Pílula Penal

Blog do Henrique Gonçalves Sanches

O CRIME TRIBUTÁRIO COM A PUNIBILIDADE EXTINTA PELO PAGAMENTO PODE ENSEJAR LAVAGEM DE CAPITAIS?

Recentemente, uma importante e já conhecida questão chamou a atenção num julgamento do Superior Tribunal de Justiça: a relação nada harmoniosa entre os crimes fiscais e a lavagem de bens, direitos e valores.

Isso porque a Corte Superior, por meio da sua Sexta Turma, julgou o agravo regimental no recurso em Habeas Corpus nº 161.701, do Estado da Paraíba, (relator Ministro Sebastião Reis Jr.), onde, por maioria de votos, decidiu que em caso de crime contra a ordem tributária, o pagamento da dívida antes da constituição definitiva do crédito, é causa de extinção da punibilidade, quando os efeitos devem se estender aos crimes conexos da lavagem de dinheiro e organização criminosa.

O relato dos autos esclarece que pessoas foram investigadas por crime fiscal, organização criminosa e lavagem de capitais, quando efetuaram a quitação da dívida tributária antes da sua constituição definitiva, circunstância que autorizou a declaração da extinção da punibilidade com relação ao crime fiscal pelo juízo de primeira instância, entretanto, mantendo inalteradas as demais imputações.

A discussão jurídica chegou ao Superior Tribunal de Justiça, onde se entendeu e decidiu que uma vez paga a dívida tributária antes da sua constituição em definitivo, não se tipifica o crime tributário e, por consequência, não haveria que se falar em crime de lavagem de capitais, tampouco o crime de organização criminosa.

Entretanto, o Ministro Rogério Schietti Cruz, o qual foi voto vencido na decisão, trouxe uma importante reflexão. Entendeu que a apuração da lavagem de capitais deveria prosseguir, conquanto o pagamento realizado posteriormente à constituição definitiva do crédito, já com a consequente ação penal deflagrada, deve funcionar como espécie de arrependimento posterior com declaração de extinção da punibilidade, entretanto, sem retirar o caráter ilícito da conduta de sonegação.

 

  1. O QUE SERIA O CRIME DE LAVAGEM DE CAPITAIS?

A definição da conduta típica está descrita na lei de lavagem de capitais (artigo 1º da Lei nº 9613/98) como sendo “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.”.

Em linhas gerais, o agente com a intenção afastar o produto do crime (bens, direitos e valores) de sua origem ilícita (qualquer infração penal), pratica condutas sequenciais (ocultação e/ou dissimulação) para reinseri-lo na economia formal com aparência de licitude.

Na hipótese dos autos, caso estivéssemos em face de um crime fiscal consumado, o sonegador poderia – em tese – ser acusado do crime de lavagem de capitais porque, ao não repassar aos cofres públicos o valor do tributo devido, estaria constituindo aumento ilícito no seu patrimônio, decorrente do “produto” auferido com a prática do delito antecedente.

Como visto, uma hipótese muito questionável…

  1. OS CRIMES TRIBUTÁRIOS NA LEGISLAÇÃO ESPECIAL E NO CÓDIGO PENAL.

Os delitos fiscais têm previsão legal especial na Lei nº 8.137/90, a qual dispõe sobre crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo. No capítulo relacionado aos crimes tributários (capítulo I), existem três artigos descrevendo condutas típicas, sendo dois destes cometidos por particulares (artigos 1º e 2º) e apenas um por funcionários públicos (artigo 3º).

Também não podemos deixar de fazer referência às disposições do Código Penal, o qual descreve as condutas de apropriação indébita previdenciária (artigo 168-A), a falsificação de papéis públicos (artigo 293), o excesso de exação (artigo 316, §1º), o descaminho (artigo 334), e a sonegação de contribuição previdenciária (artigo 337-A).

  1. A SÚMULA VINCULANTE 24 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

A despeito de todas as críticas que recaem sobre a Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal, atualmente se entende que não existe crime consumado contra a ordem tributária na hipótese do artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90 e, por consequência, justa causa para ação penal, enquanto o lançamento do tributo estiver pendente de decisão definitiva no processo administrativo tributário.

A questão que costumeiramente se coloca é a seguinte: se o tributo não foi lançado pela Administração Pública, não há que se cogitar crime tributário do artigo 1º da Lei 8.137/90, então como se falar em lavagem de capitais?

 

  1. O PAGAMENTO DA DIVIDA TRIBUTÁRIA E A CONSEQUENTE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DO CRIME.

No ordenamento jurídico Brasileiro pacificou-se o entendimento de que, nos crimes dos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, e naqueles do Código Penal (artigos 334, 168-A e 337-A), uma vez concretizado o pagamento integral do tributo, independentemente do seu momento, a punibilidade será declarada extinta.

Este entendimento foi reforçado por recente decisão do Supremo Tribunal Federal, o qual julgou a ação declaratória de inconstitucionalidade 4.273, para reconhecer a constitucionalidade dos artigos 67, 68 e 69 da Lei nº11.941/2009 e artigo 9ª da Lei nº 10.684/2003, os quais reconhecem a suspensão da tramitação de ações penais por crimes tributários enquanto durar o parcelamento do débito, ou da extinção da punibilidade em caso do pagamento da dívida.

O parcelamento da dívida tributária é uma questão à parte do pagamento, quando não se confundem, tampouco se assemelham. Para fins de esclarecimentos, os Tribunais do país têm decidido, inexplicavelmente, que só terá efeitos para suspensão da apuração do crime se o acordo de parcelamento for realizado antes do oferecimento da denúncia, o que não ocorre com o pagamento, que pode ocorrer a qualquer tempo.

 

  1. UM BALANÇO CRITICO DA QUESTÃO ENVOLVIDA.

No caso dos autos, teria ocorrido a extinção da punibilidade do hipotético crime antecedente em razão do pagamento da dívida tributária antes da constituição definitiva do crédito fiscal.

Em nossa opinião a decisão parece ser inquestionável quando ao seu acerto.

Por outro lado, e como já destacado anteriormente, a extinção da punibilidade pelo pagamento da dívida tributária pode ocorrer a qualquer momento, leia-se, inclusive com a ação penal já deflagrada.

 Nesta circunstância, a questão da hipotética lavagem de capitais torna-se tormentosa porque, com fundamento no artigo 2º, inciso II da Lei nº 9.613/98, existe relação independência de processos e reconhecimento de acessoriedade limitada do crime fiscal, o que torna possível o processamento da lavagem de capitais, ainda que extinta a punibilidade pelo pagamento, por um único motivo: este não afasta o caráter ilícito da sonegação!

Entendemos que nada justifica o sistema penal perdoar um devedor tributário em razão do pagamento, o qual repara a lesão ao bem jurídico penalmente tutelado, mas, concorrentemente, continua reconhecendo a ilicitude daquela dívida, classificando o seu valor sonegado como “produto de crime” para fins de configuração da lavagem de capitais.

Mas respondendo à pergunta do título, acreditamos que havendo o pagamento da dívida tributária em qualquer momento, mesmo que já deflagrada a ação penal, não há como se sustentar a tipificação de lavagem capitais por uma lógica de sincronização do sistema penal e, principalmente, por ausência de lesão dos bens jurídicos penalmente tutelados pelas condutas: o patrimônio público e o sistema econômico. 

Em conclusão, dentre esta e outras questões específicas, compreendemos que, geralmente, os crimes de lavagem de capitais e aqueles cometidos contra a ordem tributária não cabem harmonicamente no mesmo parágrafo.

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