- A serendipidade no Processo Penal
A serendipidade no Processo Penal refere-se à situação em que, durante o curso de uma investigação ou instrução criminal, provas ou fatos relevantes e inesperados surgem, sem que essas informações estivessem originalmente na mira da investigação. No entanto, ao contrário do conceito de serendipidade na ciência, onde descobertas acidentais são bem-vindas e frequentemente úteis, no Processo Penal, o uso de evidências obtidas por acaso pode suscitar preocupações sobre a legalidade e a validade dessas provas.
- Exemplos de serendipidade no Processo Penal
Na interceptação telefônica: durante a investigação de um crime específico por meio de interceptações telefônicas autorizadas judicialmente, os investigadores podem se deparar com provas de outros crimes que não estavam sendo inicialmente investigados. Por exemplo, uma interceptação feita para investigar um crime de tráfico de drogas pode revelar conversas relacionadas a um homicídio que estava sendo investigado separadamente.
Embora as provas tenham sido obtidas acidentalmente e de forma legal (uma interceptação autorizada), o uso dessas novas provas em relação ao crime não investigado inicialmente pode levantar questões sobre a validade de sua utilização, considerando o princípio da finalidade das provas e o respeito aos direitos constitucionais dos investigados.
Na busca e apreensão: imagine que a polícia obtenha ordem judicial para investigar fraude fiscal em uma residência, e durante a busca, eles encontram drogas ilegais ou armas de fogo não registradas. A descoberta dessas evidências, que não estavam na finalidade original do mandado, é um exemplo de serendipidade.
A questão aqui é se as provas obtidas incidentalmente (as drogas ou as armas) podem ser usadas para instaurar uma nova investigação criminal, ou se a obtenção dessas provas violaria o princípio da legalidade e do devido processo legal, já que a busca e apreensão foram autorizadas para uma finalidade específica.
- Aspectos legais da serendipidade no Processo Penal
No Processo Penal brasileiro, o uso de provas obtidas por serendipidade é um tema sensível, pois envolve o equilíbrio entre o direito à prova e o direito à defesa, assim como a proteção das garantias fundamentais do acusado.
Os principais pontos de discussão recaem sobre o princípio da legalidade das provas. As provas no Processo Penal devem ser obtidas conforme a legislação e de acordo com o fim específico para o qual foram autorizadas. O art. 157 do CPP determina que provas obtidas por meios ilícitos são inadmissíveis, incluindo aquelas que derivam de provas ilícitas (teoria dos frutos da árvore envenenada).
A serendipidade pode se situar no limite entre uma prova legalmente obtida (se descoberta de forma fortuita durante uma investigação legítima) e uma prova que pode ser questionada, caso viole o princípio da finalidade ou outras garantias processuais.
Existe importante efeito em relação ao princípio da proporcionalidade. Isso porque, no julgamento da admissibilidade de provas obtidas por serendipidade, se a descoberta de novas evidências for crucial para a apuração da verdade e não violar direitos fundamentais do investigado, a prova pode ser admitida. Em contrapartida, se a obtenção dessas provas representar uma violação de direitos, como a privacidade ou o devido processo legal, sua admissibilidade pode ser questionada.
- A jurisprudência sobre serendipidade
A jurisprudência brasileira tem discutido a admissibilidade de provas obtidas de forma fortuita em investigações. Em geral, se a descoberta ocorre de forma acidental e dentro de uma investigação legitimamente autorizada, há espaço para a aceitação das provas. No entanto, isso depende das circunstâncias, especialmente se o ato investigativo original seguiu os devidos trâmites legais.
Em interceptações telefônicas, o STF (HC 80.949-SP) já decidiu que provas fortuitamente descobertas durante uma escuta autorizada, mesmo que não diretamente relacionadas ao crime investigado, podem ser utilizadas, desde que respeitem a legalidade do procedimento original.
Essa decisão consolidou o entendimento de que, desde que a investigação inicial tenha sido realizada dentro dos limites legais e com a devida autorização judicial, as provas acidentais descobertas podem ser admitidas, respeitando-se os princípios constitucionais, como o princípio da proporcionalidade e o princípio da legalidade.
5. Distinção entre serendipidade e o “fishing expedition”
A serendipidade envolve uma descoberta casual dentro de uma investigação conduzida legalmente. Embora a descoberta não tenha sido planejada, ela ocorre de forma legítima e pode ser usada no processo penal, desde que respeite os direitos do investigado.
O “fishing expedition”, por outro lado, é uma prática abusiva e arbitrária, onde se busca algo incriminador sem uma justificativa adequada. Ela viola o devido processo legal e os direitos fundamentais, e as provas obtidas dessa maneira são, em regra, consideradas inadmissíveis no processo penal.
6. Conclusão
A serendipidade no processo penal envolve a descoberta acidental de provas ou informações durante uma investigação criminal. Embora a doutrina e a jurisprudência reconheçam que essas provas podem ser usadas em determinados contextos, sua admissibilidade depende de uma análise cuidadosa dos princípios constitucionais, como a legalidade, a proporcionalidade e o devido processo legal.
Essas descobertas não podem servir como justificativa para abusos investigativos ou violações de direitos fundamentais, e seu uso em processos judiciais deve ser cuidadosamente ponderado.