O sítio eletrônico do Superior Tribunal de Justiça publicou uma reportagem (28/04/2024) a respeito da sua jurisprudência no tratamento prioritário dos casos de improbidade administrativa. Dentre algumas decisões, selecionei um recurso em Habeas Corpus que envolve a questão da multiplicidade e independência das instâncias no combate à corrupção, como abaixo comento.
1. Para entender o caso.
Trata-se de recurso em Habeas Corpus interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, o qual pretendia trancar ação penal no contexto da denominada Operação Caixa de Pandora, eis que a recorrente, juntamente a outros corréus, foi denunciada como incursa no art. 333 do Código Penal, por 168 vezes, e no art. 1º, incisos V e VII, da Lei n. 9.613/1998, por 21 vezes.
Pelo noticiado, o juízo de primeira instância (7ª Vara Criminal de Brasília – DF) teria rejeitado a acusação quanto ao crime de lavagem de dinheiro, contudo, recebido a denúncia em relação ao crime de corrupção ativa. Ocorre que, pelo mesmo fato, o Ministério Público também teria ingressado com ação de improbidade administrativa em face da recorrente, a qual foi julgada improcedente com justificativa, entre outros motivos, na ausência do dolo na conduta.
Por esta razão, foi impetrada ordem de Habeas Corpus no tribunal de justiça loca, a qual não foi concedida porque foi considerado que “a absolvição da paciente em acusação de improbidade administrativa, ainda que haja correlação entre os fatos, não é empecilho para a persecutio criminis, se presente, como na hipótese, justa causa para tanto”. Inconformada, a Defesa interpôs recurso em Habeas Corpus na Corte Superior, onde ali sustentou que diante da absolvição da insurgente no âmbito da ação de improbidade pelos mesmos fatos, revelava-se imperativo o trancamento da ação penal.
2. A problemática envolvida: multiplicidade e independência das instâncias no combate à corrupção, com a possibilidade de decisões contraditórias, além da acumulação de sanções pelo mesmo fato (ne bis in idem).
No que diz respeito ao combate à corrupção, vigora no País um sistema de independência (e concorrência) de instâncias – microssistema anticorrupção -, o que possibilita o concurso de consequências jurídicas nas várias esferas de enfrentamento da corrupção (penal, administrativa e cível), circunstância que possibilita o acumulo de ações e decisões sobrepostas (bis in idem), quando não, contraditórias.
No julgamento do recurso em comento, inicialmente, ficou destacado na decisão que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça “cristalizou-se, como regra, no sentido de que as esferas civil, penal e administrativa são independentes e autônomas entre si, de tal sorte que as decisões tomadas nos âmbitos administrativo ou cível não vinculam a seara criminal”. (EDcl no AgRg no REsp n. 1.831.965/RJ, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 7/12/2020, DJe de 18/12/2020).
Contudo, no STJ também consta precedente mitigando a independência das instâncias por entender que “Embora não se possa negar a independência entre as esferas – segundo a qual, em tese, admite-se repercussão da absolvição penal nas demais instâncias apenas nos casos de inexistência material ou de negativa de autoria -, não há como ser mantida a incoerência de se ter o mesmo fato por não provado na esfera criminal e por provado na esfera administrativa.” (AgRg nos EDcl no HC n. 601.533/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 21/9/2021, DJe de 1/10/2021)
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também tem relativizado a regra da independência das instâncias, como é possível se ver no julgamento da Reclamação 41557 SP, onde o Ministro (relator) Gilmar Mendes fez consignar que “A adoção de uma noção de independência mitigada entre as esferas penal e administrativa – esta parece ser a posição mais acertada diante dos princípios constitucionais reitores do sistema penal, principalmente da proporcionalidade, da subsidiariedade e da necessidade – na interpretação da lei de improbidade administrativa (Lei 8.429/92), sobretudo do art. 12 (“Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:”), nos leva ao entendimento de que a mesma narrativa fático-probatório que deu ensejo a uma decisão de mérito definitiva na esfera penal, que fixa uma tese de inexistência do fato ou de negativa de autoria, não pode provocar novo processo no âmbito do direito administrativo sancionador – círculos concêntricos de ilicitude não podem levar a uma dupla persecução e, consequentemente, a uma dupla punição, devendo ser o bis in idem vedado no que diz respeito à persecução penal e ao direito administrativo sancionador pelos mesmos fatos.”
Aliás, a decisão da Suprema Corte foi reforçada na doutrina de Helena Lobo da Costa, a qual considera que “[…] decisões penais que reconheçam a inexistência de fato ou ausência de autoria não podem ser simplesmente desconsideradas pelo órgão administrativo (…) O princípio da proporcionalidade configura o fundamento jurídico do direito do ne bis in idem relativo às searas penal e administrativa (…) Para a identificação das hipóteses de aplicação do ne bis in idem examinado, devem-se verificar identidade de sujeitos, de objeto ou fatos e de efeitos jurídicos das sanções (natureza punitiva ou sancionadora). (…) Examinada a possibilidade de aplicação do ne bis in idem entre sanção penal e sanção administrativa no direito brasileiro, verificou-se que não apenas inexiste qualquer óbice para sua adoção, senão também que o princípio da proporcionalidade o impõe, já que a cumulação das vias penal e administrativa viola o subprincípio da necessidade.”(LOBO DA COSTA, Helena. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador. 2013. p. 236-237).
3. O que decidiu o Superior Tribunal de Justiça no recurso em Habeas Corpus nº 173448 – DF?
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso em Habeas Corpus para trancar a ação penal por ausência de justa causa. Nas conjunturas dos autos, considerou que na ação de improbidade administrativa a recorrente foi absolvida em virtude da ausência de comprovação do elemento subjetivo e, por esta razão, não seria possível revelar o dolo da conduta no juízo penal por se tratar do mesmo fato.
As informações da ação cível de improbidade administrativa esclareceram à Corte Superior que apenas o dolo do gestor público envolvido no caso ficou demonstrado, quando a pessoa jurídica relacionada à recorrente não logrou êxito na disputa entre os concorrentes na dispensa de licitação, precisando, inclusive, baixar seu preço para ser escolhida. Por fim, registrou-se que não se auferiu qualquer benefício, uma vez que o contrato foi anulado pela Corte de Contas.
A decisão considerou também que, ainda que esteja com a eficácia suspensa por liminar deferida pelo Supremo Tribunal Federal, em 27/12/2022, na ADI 7.236/DF, o legislador procurou criar exceção legal à independência das esferas por meio do art. 21, § 4º, da Lei 8.429/1992, incluído pela Lei n. 14.230/2021, o qual disciplina que “a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)”.
Neste sentido, ficou reconhecido na decisão que “Apesar de, pela letra da lei, o contrário não justificar o encerramento da ação penal, inevitável concluir que a absolvição na ação de improbidade administrativa, na hipótese dos autos, em virtude da ausência de dolo e da ausência de obtenção de vantagem indevida, esvazia a justa causa para manutenção da ação penal. De fato, não se verifica mais a plausibilidade do direito de punir, uma vez que a conduta típica, primeiro elemento do conceito analítico de crime, depende do dolo para se configurar, e este foi categoricamente afastado pela instância cível.”
Como visto, os Ministros consideram que, muito embora a regra seja a não comunicabilidade da decisão cível, existem fundamentos tão relevantes que não podem ser ignorados pelas demais esferas. Logo assim, tendo aquela instância afirmado que não ficou demonstrado que a recorrente induziu ou concorreu dolosamente contra os princípios da administração, não poderia a mesma conduta ser valorada negativamente em face do bem jurídico tutelado pelo direito penal.